quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Curtas (7) - Anjo da Guarda

Era já tarde.
Muito tarde e ela, não parava de andar de um lado para o outro, inventando coisas inadiáveis, só para adiar, uma vez mais, o momento diário em que o inevitável aconteceria. Por fim, numa completa rendição ao avançado das horas, acabou por subir e após a passagem pelo WC, lá acabou por se deitar. Num esforço final de adiamento, ainda ligou a televisão, passou em revista todos os canais, desligando-a de seguida e passando ao livro, mas a este… a este não resistiu e acabou por adormecer com ele semiaberto caído sobre a travesseira.

Então, nos seus olhos cerrados, começaram uma vez mais a correr aquelas imagens. Imagens que os sonhos lhe traziam sempre, invariavelmente, todos os dias, que lhe perturbavam o sono e não a deixavam repousar.

E como era este o momento pelo qual esperava, entrei. Entrei no seu sonho, resgatei-a para o interior das minhas muralhas e… abraçando-a com um só braço, deixei que repousasse a sua cabeça no meu ombro, a salvo de todas as tempestades que lá fora decorriam.


- Que bom que vieste!
- Então? Continuas com estes sonhos…
- Sim, não consigo que eles me abandonem… podias vir todos os dias…
- Não, não posso. Tens de te libertar deles sem mim.
- Era bom que viesses. Era bom que estivesses sempre ao meu lado.
- Mas eu estou sempre ao teu lado!
- Eu não te vejo…
- Mas eu estou sempre lá! Não te sentiste já muitas vezes observada?
- Sim.
- Não sentiste já tantas vezes em dias frios, um calorzinho que te provoca um arrepio de calor?
- Sim.
- Não te sentiste já contente sem saberes porquê?
- Já… mas poucas vezes…
- Não sentiste já que há dias em tudo te corre bem?
- Sim… mas mais poucas vezes ainda…
- Essas poucas vezes, são aquelas em que ergues barreiras que não me deixam passar.
- Então… Tu existes mesmo? Tu és real?
- Eu sou tão real quanto os teus medos, os teus desejos e as tuas fantasias.
- Então, porque não te vejo sempre?
- Porque eu não posso estar sempre aqui para ti. Tens de aprender a viver bem, apenas por ti.
- Isso é um castigo?
- Não… é uma ajuda!
- Mas, ajudavas-me mais se estivesses sempre comigo!
- Não, não ajudava não… deixavas de saber viver por ti e ficarias dependente de mim.
- Então… como faço para te encontrar?
- Pensa-me, deseja-me, mostra-me que me queres pelo prazer e não pela necessidade.
- E tu vens?
- Não estás a entender. Eu não preciso de vir, eu estou sempre cá!
- Então… porque não te vejo? Sempre? De dia até?
- Porque eu existo num outro plano, numa outra realidade.
- E que realidade é essa? Que plano?
- No interior de ti. Nos teus sentimentos, na tua mente.
- Então como faço para te ver?
- Olha-te no espelho e vê o melhor de ti. De seguida, fecha os olhos e ver-me-ás.
- Assim? Só isso?
- Experimenta e verás que não é “só isso”. Mas sim, basta isso.
- Ver o melhor de mim… e se não houver?
- Há sim! E é muito… e é grande… assim o queiras ver.
...
- Posso te perguntar… como te chamas?
- O meu nome, é aquele que te acalmar, te trouxer memórias boas, te der uma sensação de bem estar, que te proporcione uma sensação de felicidade.
- E qual é?
- Apenas tu o sabes…
- E… o que és?
- O que sou? Simples: sou o que de bom há em ti! Sou aquilo que reprimes em ti, numa parte do teu ser, que manténs trancada e da qual, apenas tu tens a chave.
- Então… como faço para te ter sempre comigo? Assim?
- Limpa da tua mente as más recordações. Limpa de ti os sentimentos negativos. Deixa viver o que de melhor tu tiveres!
- Tu? És Tu o que de melhor eu tenho…
- Não, estás enganada!
- Então o que é?
- És TU!

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Destroços (2)


Nos destroços do que fomos,
Passeio muitas vezes o meu pensamento,
E neles,
Deito o meu corpo,
Que inexplicavelmente,
Ainda chama por ti.

Nos destroços do que fomos,
O meu sentimento teima em ficar,
Neles parece ter estabelecido morada,
Ainda que sempre que nos lembro,
Uma mágoa se faça sentir,
E quase, quase sempre,
Uma lágrima surja,
Para me turvar o olhar.

Pelos destroços do que fomos,
Não gosto de me passear.

Para os destroços do que fomos,
Não gosto que o meu pensamento,
Recorrentemente corra para lá.
Mas nada consigo fazer,
Para combater este meu estar,
Principalmente,
Quando à noite,
Na travesseira a cabeça deito,
Na tentativa de,
Quem sabe,
De nós,
Enfim,
Conseguir repousar.

Mas quanto mais tento,
Mas quanto mais me esforço,
Mas quanto mais uma parte de mim
Grita o querer com esta situação terminar,
Mais eu,
O meu sentir,
O meu pensar,
E até paradoxalmente,
O meu gostar,
Teimam em por lá se passear.

Ás vezes,
Penso que por lá te vou encontrar.

Ás vezes,
Penso que também tu,
Por lá deverás andar.

Ás vezes…
Gostava tanto que assim fosse…

Nos destroços do que fomos,
Ainda te sinto.

Sinto o teu cheiro,
Impregnado nos estilhaços,

Sinto a tua forma,
Cravada nas formas das ruínas,

Sinto a tua voz,
Nos sons que vento profere,

Sinto-te até dentro de mim,
Quando aqui me deito,
No fundo,
Para te encontrar.

O que fomos,
Sei que não voltaremos mais a ser.

Mas no meu íntimo,
Embora a razão teime
Em mo fazer negar,
Eu sei…
Eu quero…
Eu desejo…

Espero por ti!

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Duas...

A minha Força

Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra.
Porque a minha força determina a passagem do tempo.
Eu quero.
Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo.
Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio.
Eu quero.
Eu sou capaz de expulsar o sol da minha pele, de vencê-lo mais uma vez e sempre.
Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer.
Porque a minha força é imortal.



A Verdade

A verdade, como o silêncio, existe apenas onde não estou.
O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa altura, abrem rasgões de sangue dentro de mim.
Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso.
Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos.
Intocado e intocável.
Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta.
É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade.


José Luís Peixoto
In “Cemitério de pianos”

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Destroços

Inspiração apartir de uma imagem...

Sobre os destroços do que fomos,
Há um pó que ainda paira no ar,
Pequenas partículas de sentimentos,
Que teimam em não repousar,
Sobre os destroços do que fomos.

Esses destroços que por vezes visito,
Onde por vezes vou para nos tentar ver,
Despido de quaisquer pensamentos
Anteriormente feitos,
Permanecem suspensos no tempo,
Como que à espera,
Que deitemos mãos à obra
Para os erguer de novo.

E eles não sabem,
O tamanho da minha vontade,
Em fazê-lo.

E eles não sabem,
Que eu permaneço à tua espera.

E eles não sabem,
Que é o aproximar da tua silhueta,
Que busco,
Quando desta varanda,
Pendo a minha cabeça sobre os braços,
E fixo o chão,
Onde outrora deixavas a marca dos teus pés,
No regresso a casa.

Os destroços permanecem,
Empoeirados.
E a minha vontade,
É que eles assim possam permanecer.
Porque neles ainda vejo a tua forma,
Neles ainda consigo sentir o teu odor,
Porque ali,
Naquele lugar,
Tu ainda existes,
Comigo.

São apenas destroços,
Meros cacos do que fomos,
Mas neste momento,
Para mim,
São tudo!

Se calhar,
Um dia,
Surges tu e incentivas-me a reconstruí-los.

Se calhar,
Um dia,
Arranjo alguém com quem os reconstruir.

Se calhar,
Um dia,
Eles simplesmente, desaparecem!

Mas nada disso agora importa,
Nada disso é relevante,
Porque as memórias do nosso amor,
São tantas e tão grandes,
Que não cabem naquele espaço,
Nem têm tempo!

Espero por ti!