terça-feira, maio 27, 2008

Curtas 15 - Recordo

Recordo o momento em que te conheci.

Recordo as tuas mãos, tão imensamente repletas de vários nadas, que a vida te impregnara como uma fatalidade de destino pré-escrito, impossíveis de evitar, incapazes de uma intervenção tua que o pudesse alterar;

Recordo o teu olhar, baço, triste e conformado com um futuro que não escolheras, mas que aceitavas como incontornavelmente definitivo;

Recordo a lenta e progressiva descoberta das tuas nódoas negras, das cicatrizes nos sentimentos, das feridas abertas na alma, que pensavas como eternas, impossíveis de curar;

Recordo a tua normal convivência com a dor, que assumias como um acto tão natural como o respirar, por ela fazer parte da tua existência desde que te conhecias como mulher;

Recordo a tua irreverência defensiva, de menina assustada que tinha no ataque, a forma que a vida te ensinara como defesa antecipada, contra hipotéticos males futuros que aprenderas a ter como certos;

Recordo a tua estranheza com a dádiva simples, com o carinho gratuito, com o interesse desinteressado da minha preocupação por ti;

Recordo...(te)

Recordo horas a fio de conversa, em que bebendo as palavras um do outro com a sede de uma vida inteira de seca, mergulhávamos fundo em cada um de nós e nos esquecíamos das horas, porque o tempo não servia para marcar o que decorria ou faltava, mas apenas para medir a ausência da nossa coexistência;

E recordo que com o tempo foste lentamente mudando. Não ao sabor das estações que dentro de ti era quase sempre Outono, com alguns dias de inverno pesado e frio. Mas, ao sabor do saborear dos pequenos quês que a vida te foi proporcionando e que tu foste como que aprendendo a apreciar;

Recordo horas inteiras que passavas aninhada no meu colo, em silêncio, serena, respirando com a suavidade das ondas numa maré baixa, permitindo que o fluir do ar te limpasse a mente e te aliviasse das mazelas marcadas a fogo na alma;

Naquelas horas... naquelas horas em que tudo fazia sentido, por vezes perguntavas-me o porquê de te sentires tão bem, assim, com a simplicidade de um momento sem nada de transcendentemente arrebatador, sem nenhuns sentimentos maiores, ou algo que te retirasse a respiração e desvairasse os sentidos... apenas assim, na simplicidade de um colo, sem a grandeza dos gestos ou sequer das palavras certas... apenas assim...

E quando eu te respondia que assim era, por ser nas coisas mais simples, nos momentos menos complexos, nos gestos e palavras mais “básicas” que verdadeiramente conseguíamos encontrar a “essência da felicidade”, tu simplesmente sorrias! Colocavas nos teus lábios finos, esse sorriso raro de vislumbrar em ti. Sorriso verdadeiro, livre dos pesos da vida, com a inocência da criança que sempre repreendeste no mais íntimo de ti por teres crescido demasiado depressa e... fechando novamente os olhos, voltavas a cara para o meu peito deitando a cabeça no meu braço e voltavas a respirar ao ritmo das ondas na maré baixa, ao compasso dos afagos dos meus dedos no teu cabelo;

E recordo que com o tempo, algumas feridas abertas se foram fechando, algumas cicatrizes tornando-se meras marcas de pele e o teu olhar... o teu olhar foi ganhando um contorno diferente, um contorno proporcionado pelo brilho que nele se foi instalando, pelo acumular de luz interior que os teus sentires foram lentamente, ao longo do tempo permitindo acontecer e que a partir de determinada altura e em determinadas situações se tornava praticamente impossível de conter e que conjugado com aquele sorriso... te conferiam uma beleza única;

E agora que te penso assim, recordo que nunca te disse que esse teu sorriso simples, esse teu sorriso inocente de menina, era como um sol para mim. Que sempre que me era permitido vislumbrá-lo, o meu dia ganhava outra luz e os meus sentires outras cores.

E agora que o recordo, sinto o quanto gostaria de to ter dito.

E agora que o recordo, só espero, que da próxima vez que a vida se encarregar de cruzar as nossas existências, que pelo menos dessa vez...

...eu me Recorde, de to dizer!

segunda-feira, maio 12, 2008

Curtas 14 – Naqueles dias de Inverno


Dentro do carro, aguardava com expectativa o momento em que ao fundo da rua vislumbraria a tua silhueta.
Nos dias daquele inverno em que ia almoçar contigo, era assim que aguardava a tua chegada.

E tu lá aparecias. Ao longe. E caminhavas em direcção ao meu carro. De cara levantada a exigir o respeito da vida por ti, fechada como o casaco que sempre trazias abotoado como o tempo e de passo certo, para não revelar o inseguro de um passo a anteceder o outro.
Ao aproximares-te, arqueavas um sorriso discreto, quase dissimulado e dirigias-te para a porta direita.
Já dentro do carro, um “Olá!” por entre a abertura de um sorriso nos teus lábios finos e bem delineados que sempre te caracterizaram.

Arrancando, podia observar o teu olhar, ainda meio vago, os pensamentos ainda metade fora, metade dentro do carro e o respirar circunstancial e automático como alimento à sobrevivência do corpo. À medida que o carro ia circulando, também os teus pensamentos se iam recolhendo todos àquele espaço, a cada gota de chuva que lá fora batia de encontro ao vidro e o nós começava a ganhar corpo e a tomar a sua conhecida forma.

Então, a minha mão procurava a tua e ao encontro das duas, o respirar assumia um outro papel e o teu olhar ainda meio vago, já deixava transparecer o quase confinar da tua existência a apenas aquele lugar móvel, em que ambos existíamos e que por algum tempo (pouco, sempre tão pouco) seria um espaço apenas nosso.

Por vezes, seguíamos em silêncio, ouvindo o ritmo das gotas da chuva embebido na música que do rádio soava e sentida em cada carícia que os dedos entrelaçados cantavam uns para ou outros; outras vezes, falávamos de assuntos circunstanciais, daqueles, em que cada palavra não quer dizer o que as letras a fazem, nem as frases terminam nos pontos finais, pois o que se proferia não era minimamente condicente com o que se estava de facto a “dizer”.

Chegados ao local, mudávamo-nos para o banco de trás, no qual os meus braços podiam melhor albergar o teu olhar, as minhas mãos afagar-te os sentires e os meus lábios, beber as tuas palavras.
Num instante, comíamos a nossa “refeição” – duas sandes compradas em qualquer lado, justificativas do adjectivo de almoço para o nosso encontro – para depois… depois usufruirmos do nosso verdadeiro alimento, os olhares de um no outro, o respirar de um no outro, o calor de um para com o outro.

E eram momentos únicos, aqueles que vivíamos ali, naquele espaço confinado a nós, com a música de fundo a fazer-nos companhia e com o tudo que as carícias de pele produziam no sentir de cada um.

E o tempo não passava… o tempo não existia… o tempo… era uma contagem decrescente, sempre galopante, sempre castradora do querer, que dizia que aquele tempo, aquele espaço de tempo, não deveria ser tão imensamente finito, tão imensamente pouco, tão… por nós medido a cada pulsar.

E a chuva lá fora deixava de existir, o vento deixava de se fazer sentir e o frio… era um estado de espírito em forma líquida que como que jorrando de uma chávena de café quente, nos aquecia o corpo.
Nós permanecíamos no carro, mas o nosso espírito, os nossos sentidos, os nossos sentires, estavam muito acima das nuvens, lá, onde os raios de sol nunca deixam de se fazer sentir e a luz demonstra a vida que encerramos em nós, essa mesma que muitas das vezes, sequer, disso nos permitamos aperceber.

E eu sorria. Eu sempre sorria. E o tempo passava. E o tempo terminava.

E eu adorava observar-te sempre em todos os momentos.

No caminho de retorno, tu fazias o percurso inverso. Ias gradualmente transportando-te para a realidade do mundo fora daquele carro, com o olhar vago distante, com os teus dedos (da mão que não estava entrelaçada na minha) seguravas uma ponta do teu cabelo fazendo círculos no ar e mantinhas um sorriso fino, nos teus lábios finos, enquanto o pulsar lentamente se tornava mais lento, para se sincronizar com o do tempo do relógio, que a fatalidade do mundo real nos trás.

Naquele percurso, nos instantes em que ele durava, tu ias descendo de encontro à chuva, ias descendo de encontro ao frio, de encontro à realidade que nos separava, mas… já fora do carro e vendo-te caminhar de encontro à tua tarde, eu conseguia claramente ver, que apesar de não teres nada para te proteger… a chuva não te molhava, o escuro não te encobria, porque tu… tu seguias circundada por uma luz interior, um calor em ti, que não permitia que fosses perturbada pelos indesejos mundanos e eu… eu que no carro ficava a ver-te seguir… eu só desejava, que aquela luz que de ti irradiava, durasse pelo menos… até ao nosso próximo encontro.

quinta-feira, maio 08, 2008

Porquê?


Porque é que
Sempre que te amei,
Não me disseste que não era o meu sentir que procuravas,
Mas o que o meu corpo te fazia sentir a ti?

Porquê?

Porque é que
Nunca me disseste que o calor das minhas palavras,
Só te interessava quando materializado em gestos,
Que na sua essência te proporcionavam prazer?

Porquê?

Porque é que
Nunca me disseste que a distância de mim,
Seria o morrer no teu corpo do desejo,
E não do sentimento que por mim (não) nutrias?

Porquê?

Porque é que
Nunca me deixaste ir além da tua pele,
Nunca me deste sequer hipótese de te chegar ao coração,
De me aninhar, nem que por um momento único, na tua alma?

Porquê?

Porque é que
Me mantiveste preso na ilusão das horas,
A sentimentos que não te eram recíprocos,
E que apenas em mim se faziam sentir, assim, tanto por ti?

Porquê?

Porque é que
Pela força de um querer,
A ilusão em mim foi maior que o discernimento,
E não me permitiu ver a verdade do que a realidade teimava em me mostrar?

Porquê?

Talvez...
...porque nunca to tenha perguntado?

E...
...se alguma vez o tivesse feito,
O que me responderias tu?

...Não sei...

Recolho-me em mim.

sexta-feira, maio 02, 2008

Curtas 13 – Quero que Saibas


Porque quando voltares eu já cá não estarei, deixo-te esta carta porque quero que saibas que esperei por ti.

Quero que saibas que não te deixei do lado de fora da porta, ou sequer arrumada numa gaveta velha, rangente, fechada com uma chave que se partiu. Não;

Quero que saibas, que estiveste sempre ali, na prateleira de mármore sobre a lareira, onde mais se fazia sentir o calor dos meus sentires sempre que te pensava (e era sempre em ti que constantemente pensava);

Quero que saibas que o passar do tempo, não arrefeceu em mim o sentir-te enraizada sob a minha pele, alimentando-te do meu sangue (pois neles tu cresceste e te desenvolveste a cada pulsar, sempre, em contínuo em mim);

Quero que saibas que nunca ninguém te substituiu, nem nada nunca ocupou qualquer um dos teus lugares (pelo contrário, foste tu que foste ocupando cada vez mais lugares de mim, ao ponto de quase não sobrar espaço para mim próprio);

Quero que saibas que sem ti, o tempo passou a correr tão mais devagar e os sentidos que a vida fazia, foram-se esmorecendo, mas não tu (porque tu, foste sendo sempre cada vez mais a espera, o motivo da espera, o tudo que na própria espera, deixa até de ser espera);

Quero que saibas que o sol e a lua se cansaram de passar pelos meus olhos, mas os meus olhos nunca se cansaram de te procurar no caminho de acesso à nossa porta (que passou a nunca estar fechada à chave, com receio que chegasses e por te teres esquecido da tua, fosses de novo embora);

Quero que saibas que os meus braços sempre se abraçavam à noite, na procura da sensação dos teus, que envolta no meu tronco, me trariam uma vez mais o sentir das tuas formas (essas que pelo castigo da tua ausência, eram já apenas uma quimera);

Quero que saibas que as sombras da rua passaram a ser possíveis lugares onde te imaginava escondida a observares-me, pela necessidade que a memória das mãos fazia rasgar em ti de uma simples visão de mim (tal como eu era constantemente dilacerado pelas minhas);

Quero que saibas que por vezes desejei nunca te ter conhecido, mas sem isso, sei que nunca me teria conhecido em pleno a mim e então esse desejo desaparecia e ficava uma vez mais, apenas, o imenso desejo de ti (esse que me fazia crescer uma solidão no peito, por quando nas mãos vazias de ti nelas ver nascer as noites de mim);

Quero que saibas tudo, tantas coisas, tantos sentimentos, tantos sentires, tantos devaneios e até loucuras, tanto tu, tanto eu, tanto, tanto...

Quero que saibas por fim, que eu já cá não estou não porque tenha desistido de ti. Apenas o tempo de espera foi demasiado longo e a minha vida encontra agora o seu término (essa mesma vida, que decorreu numa espera contínua e ininterrupta de Ti);

E quero que saibas, que te deixo esta carta para que fiques a saber tudo isto quando voltares, mesmo... sabendo eu... no mais íntimo de mim... que não voltarás.