sexta-feira, setembro 26, 2008

Curtas 20 - Até Quando


Porque num determinado dia um qualquer espelho te disse que tinhas de perder uns quilos extra, subias naquele fim de tarde as escadas de casa, a mesma onde desde sempre moravas. Carregavas nos ombros e nas pernas o peso de um dia inteiro de (silêncio) trabalho e (a dor) o cansaço de afazeres vários, a que a tua (quase) vida solitária te obrigava.

No final do terceiro lanço, após contados todos os 54 degraus dos quais conhecias já todas as imperfeições, arestas, riscos, textura e cores, rebuscavas a carteira em busca das chaves enquanto num grito atirado para dentro de ti, te ecoava na mente a mesma pergunta de sempre: “Até quando?”

Pergunta que assumira já vida própria.
Tinhas consciência da sua existência, mas nem sempre sabias ao que ela se referia.

Até quando continuar a subir escadas?
Até quando o peso de uma vida solitária?
Até quando morar na mesma casa com mais de 30 anos de estória da tua própria vida?
Até quando permanecer nesse espaço vazio de sentires, de respirares, de olhares que não o teu?
Até quando essa solidão?
Até quando essa mesma vida, dia após dia, noite após noite?
Até quando

E a força da vida exterior continua a empurrar-te para (um nada) a frente, num destino que (não) desconheces mas que também pouco te importa conhecer, porque o lugar onde (não) vais ter pouca importância tem, mediante o lugar (de ninguém) onde agora te encontras.

Queres mudar, mas nada fazes por isso. Na cadência dos dias cedes à habituação dos gestos, à inocuidade dos olhares e nesse marasmo navegas (completamente) à deriva de ti, chorando em alguns momentos em que de fora te olhas e (não) te reconheces.

Navegas por águas passadas e (re)lembras, ambições, desejos, sensações, todas elas grandes, todas elas Maiores e todas elas… por concretizar. E (não) vês que hoje os teus desejos são os mesmos, permaneceram inalterados, excepto na força e na vontade que sentias em concretizá-los. Todas as tuas ambições são (ainda) grandes, mas esperas (muito) pouco.

Transformaste-te numa mera espectadora de ti própria, sem força para abandonar o palco após o baixar do pano.

Encontras finalmente o molho de chaves (ainda agarradas ao teu primeiro porta-chaves) abres a porta e entras na sala com o papel desbotado de mais de 20 anos, (a)tiras os sapatos com gestos abruptos e prostras-te no sofá com a mesma idade e na força do silêncio que te aperta o peito, pensas em ti. Choras o teu destino ingrato e não vês… não vês que o teu destino depende em primeiro lugar de ti e a tua vida é aquilo que TU fazes dela.

Choras a má sorte, maldizes todos os outros que se cruzaram contigo e não te conseguiram fazer feliz e não te apercebes que foste tu, que mediante os teus rigorosos “critérios de selecção” foste afastando gradualmente todos de ti. Hoje, vives de relações conseguidas atrás do conforto da barreira de um monitor e não te chega uma mão cheia para contares todos os amigos (?!?) que assim fizeste.

E volta de novo a ecoar na tua mente a mesma pergunta de sempre: “Até quando?”

Olhas o tecto do qual pende o mesmo candeeiro que a tua Mãe comprou com o juntar de uns tostões suados e pensas que nada de teu existe ali, naquele lugar que é teu (?) e que tão pouco te diz. “Um dia mudo isto tudo” pensas tu para dentro de ti própria, onde ouves o eco da frase resposta: “Mas hoje não. Hoje estou muito cansada.”.

O estômago lembra-te o já ultrapassar das horas de refeição e um novo cansaço nasce de dentro de ti. Limitas-te a enfiar a mão num dos sacos que carregaste escadas acima, do qual retiras uma maçã que assim é elevada à categoria de refeição num momento de esgotamento profundo elevado à categoria de vida.

Comes a maçã com o mesmo desinteresse que choras as cenas do filme a que assistes mais tarde, até te lançares sem resistência nos braços de Morpheu, que querias homem para te aconchegar nessa noite e nas próximas que sabes virem, entradas pela mesma porta, sentadas no mesmo sofá, debaixo do mesmo candeeiro, entre o mesmo papel de parede que te serve mais vezes de lençol que os próprios lençóis da cama, a qual muitas das noites, não chegas sequer a sentir.

Estás parada em ti, num tempo que é só teu, com a vida a decorrer à tua volta, mas não em ti.

Até quando?

Tens os desejos envoltos em sentimentos que te são externos e não consegues resgatar para dentro de ti.

Até quando?

Tens as mãos frias de um nada de sentires a que te agarras para não te afundares.

Até quando?

Tens o vazio de uma casa outrora não tua, tal como agora.

Até quando?

Não tens nada!

Até quando?

19 comentários:

Walter disse...

Até quando vou continuar a sentir-me esmagado pelas tuas palavras?
Saio em silencio e preso ao que escreveste!Excelente, as usually!

Cristina Costa disse...

Bom. Muito bom.

Jo disse...

Ai.
Até quando...

(Como sempre, do melhor)

beijo*

Thiago Forrest Gump disse...

Um texto que pode retratar a vida de milhares e milhares de pessoas, umas por azar, outras por critérios de seleções.

A resposta é uma só: querer mudar e depois, conseguir mudar.



Bom domingo

Som do Silêncio disse...

É...
Até quando?
:)

Bjs

Patrícia Mota disse...

Sempre que te leio imagino que, um dia qualquer distante, ou nao, consiga escrever um pouco como tu. Sim, confesso que, as vezes sinto ciumes.
Deixas toda a gente sem palavras, sabes porque? Porque és completo, porque dizes tudo de maneira simples. Porque se entende o que tu escreves.

Obrigada, mas obrigada mesmo, por nos permitires ler-te de vez em quando.

Beijo*

Anónimo disse...

Até sempre...
Ou
Até um dia...

Prefiro acreditar que será apenas até um dia. o dia em que ganhará forças para rasgar o papel, trocar o sofá, trocar o candeeiro de tecto por um de mesa, mudar a fechadura, pintar as paredes, mudar o espelho de sitio e que ele lhe mostre não o reflexo do que vê mas o seu interior que é seguramente mais forte do que a sua aparente fragilidade", correr os cortinados e abrir as janelas para um NOVO DIA que está para começar. O primeiro DIA do resto da sua NOVA VIDA.

BJ

Trapezista disse...

Até quando... deixar de Ser, Sentir... em função de um ideal desfeito, que te consome o sonho do que ainda podes viver.

Alguém que eu amo muito, encontra-se em suspenso... nesse... "até quando?" e dói(tanto) de o saber

Um beijinho meu
Trapezista

Amor amor disse...

Se achas que podes mudar este quadro, vá em frente, em seja o responsável pelo fim do até quando...
Mas garanto que para ela, até não passou tanto tempo assim, e não é porque ela QUER sentir assim, é porque ela SENTE assim!

Beijinhos doces cristalizados!!! ;o*

P.S. A clima desta música que toca enquanto leio é uma perfeita continuação deste post; não conhecia, e me apaixonei!

... disse...

"Até quando" é um espaço de tempo que tem que ser substituido rapidamente por "Porquê?" e consoante a reposta será "Agora" ou "Adeus"

Não fiques preso no limbo do "até quando"...

Twlwyth disse...

As mudanças nunca são fáceis, mas também não são impossíveis. Para além de outras coisas, gostei do pormenor dos 54 degraus, das chaves e do vestido que aparece na imagem.

Beijo

Reticências disse...

"Tens as mãos frias de um nada de sentires a que te agarras para não te afundares."

Tanta coisa numa só frase...

Delicioso, como sempre.

Bjo

HNunes disse...

Por vezes também pergunto: "até quando?" E no meio do meu longo silêncio, deixo-te um bjo na esperança que não me perguntes: "até quando?"

Maria José disse...

Por tempo demais. Talvez, por tempo demais e até se perder na memória o porquê.

as velas ardem ate ao fim disse...

Ate sempre!

um bjo

Anónimo disse...

A decisão mais dificil de tomar... "é agora.."

CLÁUDIA disse...

Mais um texto absolutamente fantástico.

Encerra tanto daquilo que "não nos deixamos ser"...
E faz pensar. Faz pensar muito.

***

BF disse...

Até quando vamos ver vidas assim...

Eu própria me revi nalgumas partes do teu texto.

Beijo
BF

Patrícia disse...

"Queres mudar, mas não fazes por isso". Pois é. Somos o que fazemos mas somos principlamente aquilo que fazemos para mudar o que somos.

"Transformaste-te numa mera espectadora de ti própria, sem força para abandonar o palco após o baixar do pano. "
A vida é um teatro. Enquanto estás em palco, chora, grita, luta, vive. Aproveita porque quando o pano fecha já não podes dar mais espectáculo.

"Não vês que o teu destino depende em primeiro lugar de ti e a tua vida é aquilo que TU fazes dela."
Penso muitas vezes no destino. Existe, não existe? Será que nascemos realmente já com uma história escrita de antemão, um guião que temos que seguir dê por onde der? Não sei, mas cada vez menos acredito nisso. O destino foi a justificação que os fracos arranjaram para justificar os seus dissabores e todos os caminhos errados que tomaram.
Está sempre nas nossas mãos mudar o nosso rumo ... a questão é que por vezes estamos tão habituados á rotina, por mais enfadonha e triste que seja que nem lutamos um pouco pela felicidade. Até quando?

"Um dia mudo isto tudo” E porque não hoje? Agora? Neste preciso momento?
“Mas hoje não. Hoje estou muito cansada.”
Há 3 anos atrás conheci um menino num hospital. Um menino muito doente que com 8 anos raramente tinha corrido pelos parques e jogado á bola como todos os meninos da sua idade. Este menino tinha uma doença que o levava a estar muito tempo no hospital e quando saía, voltava novamente.
Um dia, nos corredores do hospital estava um papel assinado por ele: "Está um lindo dia para viver a vida".
E ele vivia-a. Brincava nos corredores com uma pequena bola e com uma máquina de soro corendo com ele, vivia - a com um sorriso e com esperança de lhe encontrarem uma cura ... Não sei se ainda é vivo e tal como a personagem do teu texto, estou aprisionada. Aprisionada pelo medo de ao procurá-lo descobrir que já não está mais entre nós. Prefiro viver assim, na dúvida, acreditando que já tem a sua cura (sei que não existe ...) e passeando pelos parques dourados pelo sol de Outono ...

" Não tens nada." E quando pensas que já não tens nada, descobres que ainda te tens a ti própria.

Beijinho *
Desculpa a invasão e o comment extra grande. Adorei o texto e inspirou me bastante. Parabéns por ele ...

Beijinho novamente *