sábado, outubro 29, 2016

O FIO INVISÍVEL

As mãos pararam e tudo então era nosso. O Verão que entrava pela janela. O canto dos pássaros. Os teus cabelos. O teu nome no ouro dos meus dedos.
Os teus olhos diziam de nós, como as gaivotas do mar. O salto que nunca tínhamos dado, era agora coisa conseguida. E eu, tão pequeno para albergar todo o momento, era fonte infinita.

Éramos passado, presente e futuro. E tudo se resumia a nós. Sem nada interferir. A vida plena. Em beleza. De nós. Todos os quereres. Todas as vontades. E tu.

O verão passou. Muitos. Décadas. Muitas luas. Metade do limoeiro secou. Em silêncio.
Mas ainda te tenho gravada em mim. Como o teu nome no ouro. Que permanece no meu dedo. Em orgulho. Fonte interna.

Porque não estás aqui?

sábado, outubro 15, 2016

NÃO SEI O QUE VISTE

Quando nasci, não estava um lindo dia de sol. Foi numa manhã fria e cinzenta. De nevoeiro cerrado. Onde nasci, o mar não banhava a praia. Foi no meio de serras. Altas. Feitas muros. Impossibilidades. Não nasci num berço dourado. Numa clínica branca. Esterilizada. Em braços estranhos. O corpo de minha mãe vomitou-me. Num espasmo. Em cima de uns lençóis fétidos das horas. Dos seus líquidos.

E fiz-me fechado. E escuro. E rodeei-me de barreiras. E fiz-me vómitos de palavras. Fétido de sentires. Durante anos. Os anos pequenos. Em que ainda não somos. Vamos-nos fazendo. Levando-nos ao sabor da vida. Curta. Sem saberes. E com poucos sabores.

Não sei o que viste.

Hoje vejo-me nos teus olhos. Um outro de mim. Que desconheço. Que quero ser. Mas no qual não acredito. E deixo-me levar por ti. Pelas tuas mãos que são sol. Contrárias às minhas de nevoeiro. Pelos teus cabelos que são mar. De encontro aos meus que são serra. Pela brancura da tua pele. Em contraposição ao escuro que no fundo... sou todo eu.

Por vezes tudo sangra. Outras tudo se extasia. Porque o menor dos homens - que sou eu - não é nada em face da luz. Onde toda a vida acontece.

E assim vou-te querendo. Querendo-me. Deixando-me levar.
Por ti. Em mim.

sábado, outubro 08, 2016

OFERTA

Minha mão escreve o teu nome. Nomeia-te à boca da caneta. Nos dedos trémulos. Que te conhecem. Que levam o teu nome para dentro de mim. Onde habitam os ecos de ti.

Contigo aprendi que a distância não importa. Não a distância física, que os pés anulam. Mas a distância tempo. O tempo que perece à mão da palavra. E que nos ensina. Que a palavra é veículo. Motor. Morte. Espinhos. Rosas ou sorrisos. Asa de gaivota. Maresia. É tudo o que quisermos. Tudo o que formos capazes.

Da palavra fazemos mundo. E o mundo faz-nos breves. Mas não em nós. Não em ti, nem em mim. Não naquilo que somos. Porque eu sou-te em muitas palavras. Porque eu quero-te minha noutras tantas. E para isso as folhas em branco. Que te ofereço. Para as tuas. Para que depois as faças minhas. No amor das coisas.

Fico à espera.

sábado, outubro 01, 2016

ÚLTIMOS MOMENTOS

Lentamente, um a um, fui colocando todos os toros. Até o cesto ficar vazio. Alimentei a combustão até ao fim. Como a nossa vida. Crepitava na lareira o último toro, já perto das cinzas, quando tu

- Amanhã vou embora.
Assim. Em vazio. Tal como o cesto. Sem nada mais para alimentar as chamas. Enquanto eu imóvel. Sem palavras. Olhando o que restava (de nós) do fogo. Remexendo-o nas entranhas em busca de um sentido. Sentindo-me - ainda que não to dissesse - as próprias cinzas.

No silêncio, levantaste-te e dirigiste-te ao quarto. A cama para uma última noite. Fria. Sem intimidade. Enquanto eu imóvel. Olhando o fogo que já não ardia. Remexendo as cinzas. Procurando-nos. Tentando saber onde nos perdêramos. Quando deixáramos de ser fogo.

Momentos.

Aos pés da cama, toda a vida arrumada. Duas malas apenas. Pouca vida para tanto tempo.
Enquanto na sala, em frente à lareira, o cesto vazio. Ainda a sonhar.