sábado, janeiro 21, 2017

O QUE VESTIR

O que vestir agora, depois que a tua pele cobriu a minha. De trilhos de memória terem sido semeados nos meus poros. E eu não ser mais do que chão dos teus caminhos traçados no meu ventre.

O que vestir agora, depois que a tua voz foi calor. Palavras repousadas em mim. Vestindo-me com nadas de sílabas. Sopradas. Gritadas. Nos silêncios que nos unem.

O que vestir agora, depois de sermos unidade crua. De fundirmos vontades. Íntimas. Em segredos secretos. Nossos. De plenitude.

Nada mais me completa. Me define melhor que tu.

Por isso, meu Amor, vem. Vem vestir-me de novo com a tua pele. Percorrer-me de novo com as tuas mãos. Falar-me de novo com palavras rentes. Dizer-me do meu rosto. Dos meus lábios. Do olhar. Da linha do meu pescoço e da surpresa dos meus cabelos.

Vem.
Vem fazer de mim, outra vez, a mais funda certeza da tua existência.
Onde eu existo. Apenas. Para ser o mundo. Em que nos inventámos.

sábado, janeiro 14, 2017

TODOS OS DIAS

Todos os dias penso em ti.
Na tua boca. Delicada e rude. Cheia de palavras fortes. Na tua voz. Rouca. A dizer-me tua. Como se tu. Vou até ao teu silêncio. Em círculos. Ao teu tempo. Onde eras. Teu chão de pedras. Afiadas. Para te encontrar. Em pegadas de sangue. Deixadas pelos meus pés. Nelas, amo-te em serenidade desesperada. Nos teus mistérios também.

Todos os dias penso em ti.
Vejo-te ao longe como navio que abandona o porto. Imagino-me água. Olho-te, mas não te falo. Sei que na tua distância lês os meus silêncios. Mas desconheço se a leitura corresponde ao que não te digo. E ainda hoje te espero. No nosso tempo partido. Como se viesses. Ou como se precisasse da tua autorização para te esquecer. Para ser.

Sou ilha na distância dos nossos corpos. Mar tumultuoso. Inavegável. Antes de ti, não sabia da minha solidão. Hoje, sei apenas isso. Sou tempo em falta. Pó dos teus segredos. E sangro. Jamais alguém me conhecerá como tu. Serei apenas nome. E distância. Porque no meu perto só existes tu. Ainda que não aqui.

Todos os dias penso em ti.
Ninguém me conhece. Sou longe. Mistério. E vazio.

sábado, janeiro 07, 2017

POSSO

Posso dizer-te que já não me és. Que já não te quero. Que já não te tenho em mim. Que o tempo apagou todos os teus traços e que o meu corpo já não tem memórias de ti. Que a tua voz já me é estranha. O teu toque já só me é sombra. Passado. Que tudo o que é meu nada tem de ti. Que o meu cio já não te pertence. Que os meus arrepios são apenas meus. Que sem ti sou maior. Mais que tu. Muralha. Alta. Forte. Blindada. Mas as janelas...

Há janelas que por vezes se abrem para te deixar entrar. Em jorro. Avalanche. Tudo num único instante. E tudo então é mentira. Ardes-me em cada ruga de pele. Em cada vinco de poro. Nos lábios nus. E procuro-te incessantemente. Desejo-te. Quero-te. Não importa como. Inteiro, ou aos pedaços. Com todo tempo, ou a tempo contado. Em imagem, ou apenas em som. Desde que na pele. Na noite. Sobre mim. Dentro de mim. Porque só tu me estremeces. Só tu me fazes líquida. Animal. Urro. E grito. Só tu tens nas mãos o poder do tempo. Em que somos. Em que me fazes. Em que nada mais.

No egoísmo de te querer inteiro, perdi-te. E tudo o que tenho agora é esta luz. Este vazio a que me agarro. Silêncio onde me sangro. Me perco. Definho. Tenho medo de saber mais do que sei. Porque não te quero saber noutra. Não te quero saber noutro corpo. Noutra pele. Noutros gritos. E does-me. Mas eu quero-te nesta dor. Em espinhos. Em sangue. Desde que teu. Desde que só meu.

A luz já só me queima. Calcina-me as entranhas. Mas seguro-a com toda a minha força. Agarro-a. Faço-a tudo de mim. Porque ela é tudo o que me resta. De ti. E eu, que não te posso perder de mais nenhuma forma, aprisiono-a. No meu corpo.

Até que tu. Numa dor de cada vez.