terça-feira, junho 17, 2008

Curtas 16 – Parte de Mim


Decidi finalmente livrar-me de ti de forma definitiva.
Procurei uma caixa para colocar lá todos os teus pertences, réstias de ti, que ainda andavam espalhadas por aí, como fantasmas alados que teimam em permanecer, negando a sua condição.

“Não deve ser preciso uma muito grande” – pensei eu – “Já passou tanto tempo...”

Coloquei-a em cima da cama e semi-deitado ao lado dela, comecei com calma, sem qualquer tipo de pressa, a colocá-los lá, um por um...

Comecei pelas tuas palavras.
Espalhadas por todos os cantos, pondo todos os meus espaços em completa desordem, fui recolhendo-as e com jeito, com um certo carinho nostálgico, acomodando-as uma a uma, sobre o fundo da caixa. Como é possível? Como é possível que fossem tantas? Em todos os lugares, todos os objectos, todas as lembranças, todas as memórias estavam palavras tuas...
Encheram quase toda a caixa. Fui procurar uma maior.

Coloquei a maior ao lado da primeira, despejei nela todo o conteúdo e continuei...

Passei para as frases.
Aqueles pedaços da tua voz que guardava ainda no vibrar dos meus tímpanos, rabiscados nos meus sentimentos, das quais tantas vezes me lembrava...
Tinhas o dom da palavra e esse hábito de verbalizares frases que deixavam em mim, marcas da tua presença. E até agora, eu ainda não me tinha apercebido do quanto e do tantas que elas eram...
Já não couberam todas na nova caixa! Tive de tratar de arranjar outra ainda maior.

Coloquei a maior agora no chão e despejei uma vez mais, todo o conteúdo da anterior e continuei...

Voltei-me para as imagens.
Desfolhando o álbum de nós, as imagens de ti gravadas na memória, foram passando como um show de slides. Um show que parecia não ter fim... Tinha imagens de ti em tantos lugares, tantas situações, tantas emoções... imagens de ti... imagens de nós...
Imagens das tuas mãos (das tuas mãos nas minhas), dos teus olhos (onde via reflectidos os meus na envolvência de um beijo), dos teus lábios (embrenhados nos meus, passeando-se pela minha pele), dos teus braços (envoltos em mim, nos nossos abraços)...
Foi quando me apercebi que as minhas memórias eram as nossas memórias e apesar de fazer um esforço nesse sentido, não consegui encontrar nenhuma da qual não fizesses parte...

Uma caixa não serve definitivamente. Terei de arranjar um caixote e desta vez, trarei o maior que arranjar.

E foi no jardim que continuei a limpeza.

A primavera deu-me o mote para a próxima secção: os odores.
Como tenho tão presentes em mim ainda os teus odores. Lembro-me do toque de cada essência do perfume que colocavas pela manhã, do perfume que colocavas para sairmos à noite, do odor de ti que deixavas na almofada, do odor de ti que ficava impregnado na tua roupa, mas sobretudo: do odor que a tua pele emanava! A tua pele acabada de sair do banho, a tua pele orvalhada no final das nossas danças a dois, sempre tão íntimas, sempre tão diferentes, sempre tão... nossas! As danças... as músicas... Tantas!!!

E então os sons!
Eram tantos os sons que guardava de ti. Para além dos teus sons, esses que emitias no esgar da intimidade de um Amor feito a dois corpos fundindo-se num só, para além desses sons... impressionante... tenho presentes em mim até os sons do teu quotidiano! O som de ti enquanto lavavas os dentes, sempre com os mesmos gestos, ao mesmo ritmo, em que as cerdas da escova desfilavam notas monocórdicas em uníssono; o som de quando lavavas as tuas mãos (essas mãos...) em gestos mecanizados e propositados; o som da fivela do teu cinto a tilintar enquanto vestias as calças; o som do correr do fecho das botas enquanto o cabedal se moldava ao formato das tuas pernas; o som da escova no teu cabelo, em sons curtos e decididos... Mas sobre todos... o som do teu sorriso... esse som mudo, dos lábios a arquear e a entreabrirem-se, desvendando o branco brilhante do esmalte dos teus dentes perfeitos...

Incrível como por vezes, somos ultrapassados pelos momentos, trespassados pelos sentimentos, sem que de tal nos apercebamos.

Comecei decidido a livrar-me definitivamente de ti,
E nesse processo,
Fui mergulhando cada vez mais fundo em mim,
Encontrando-te nos mais recônditos recantos do meu ser.
Enchi caixas e caixotes com os teus pertences,
E agora...

Nas caixas que foram ficando cheias ao longo do processo,
Nos caixotes nos quais coloquei todo e cada pedaço de ti,
Vejo,
Que não é apenas de ti que me estou a livrar,
Não és apenas tu, retalhos de ti, que estão despojados neles,
Mas todo um EU,
Que sem ti,
Fica tão absurdamente vazio...

Detenho-me e observo-os.
Observo-os e decido.

Esvazio os caixotes.
Despejo-te de novo em mim.

Tudo o que de ti ficou,
Tudo o que de ti existe...
Ficará assim...
Para sempre...

...como Parte de Mim!

29 comentários:

Reticências disse...

Estou sem palavras... as tuas dizem tudo.

"Fica tão absurdamente vazio..."
"Despejo-te de novo em mim."

Também eu sinto essa como a única solução
para as angústias do meu coração...

Trapezista disse...

Olá Brain, ao ler-te envolvo-me sempre nas tuas palavras e no tanto que fica por dizer...
Lembranças... fazem parte de nós, da nossa essência, tornam-nos na pessoa que somos agora... são como retalhos de momentos, cozidos a quatro mãos na nossa alma.

Deixo o som do meu sorriso, e um beijo

Trapezista

Brain's Wife disse...

O verdadeiro amor é isto.

É a capacidade de, sendo verdadeiro e intenso, provocar marcas para a vida, marcando principalmente a nossa forma de existir.

O Eu existe em Ti e o Tu existe em mim. E é nos sentires que o amor se revela de forma mais evidente.

Excelente esta curta, na forma e no conteúdo. Adorei o final, pois afinal vale ou valeu apena AMAR.

Beijos
TUA (a que faz parte de ti)

Anónimo disse...

Simplemente...fántastico este teu blog! Excelente música!
Palvras que penetram fundo na alma...
Não tenho o dom da palavra e muito menos da escrita, mas adoro ler, e este é uma passagem obrigatória, para mim.

Bj

Flor

Anónimo disse...

"...sometimes goodbye's the only way..."
Já diziam os Linkin Park e faço minhas as palavras deles.


E porque a vida é feita de chegadas e de partidas, muitas vezes, é vital comprar malas novas e simplesmente...partir e não deixar que o passado nos arraste com ele, seja em que contexto for.

(Dito assim, até que parece fácil, não é?)

Talvez uma das tuas melhores Curtas.

Beijo sentido, my Dear.


Raquel Branco

Esmeralda disse...

Credo!!!

Desculpa, foi a única palavra que saiu assim que acabei de ler.

Lindo!!! Brutal!!!
Nada a crescentar, essa vida é tua, mas igual a tantas outras...

Vou voltar!

beijocas

Azul disse...

Dear Brain,

É… existem pessoas assim. Que nos marcam tão profundamente, que as temos tão dentro de nós que mesmo que, por uma qualquer circunstância da vida, as queiramos arrancar de nós, o processo torna-se tão difícil que nos chega a “doer” para não dizer que às vezes é mesmo impossível conseguir fazê-lo.

Podemos tentar colocar tudo numa caixa, no fundo de uma gaveta e fechá-la à chave, num baú arrumado num sótão repleto de velharias sem uso mas depois… depois é como se não encontrássemos a nossa alma. Porque é uma parte de nós e, sem ela, não ficamos “completos”.

Então, compreendemos que não as podemos tirar de nós, das páginas da vida da qual fizeram ou ainda fazem parte mas sim, guardá-las. Guardá-las bem dentro de nós e recordá-las se apenas isso nos for permitido. Recordá-las com todo o carinho bem como, todos os momentos que nos proporcionaram.

Não as devemos tirar de nós mas sim vivê-las em nós… da forma que nos for possível.

E a música… bem, palavras para quê?! É Pedro Abrunhosa e os seus poemas únicos em sentir.

Meu Beijo para ti

Azul

nOgS disse...

É arrepiante e belo ao mesmo tempo como é tão verdade que existe aquela pessoa que sempre fará parte de nós.

Senti cada palavra, cada gesto... Como se um dia tentasse arrumar essa minha outra pessoa que impossível já será separar de mim.

BEijo

Unknown disse...

bem... como sempre...de curtas... tem mto pouco...

longo o sentir...
longo o saborear...
longo o prazer de ler...

longo o prazer de escutar...
um dos grandes artistas portugueses da actualidade... que bom é escutar as musicas...

abraço. um dakeles!

Peach disse...

Este texto está simplesmente divinal... já o tinha lido com toda a atenção. :)

Qualquer coisa que diga mais... é ruído!

Acredita que escreves cada vez melhor

beijo

NARNIA disse...

Não tenho palavras!

Beijinho comovido


(É um privilégio ter as tuas visitas)

Anónimo disse...

És tão SUBLIME!!!
Lindo...
Bj Flor

Twlwyth disse...

Este teu texto fez-me lembrar as épocas das arrumações, quando tentamos colocar demasiadas coisas num caixote e depois quando vamos a pegar nele, volta a sair tudo por baixo. :) Serão as coisas que não querem sair do nosso espaço ou seremos nós que não estamos preparados para ficar sem elas?

Adorei cada pormenor destes sentires.

Beijo

Amor amor disse...

Nunca nem tentei encher as caixas com sons, cheiros e memórias, porque sabia que, ao final de tudo, iria fazer como você: despejar em mim tudo outra vez. Por isso, gostei tanto da forma como vc solucionou o "problema": quando tanta gente acredita que é melhor esquecer, você aceita como parte da sua pessoa.

LINDO DEMAIS, BRAIN!!! Assim como tudo o que vc escreve!

Beijos doces cristalizados!!! ;o)

Anónimo disse...

Adorei!!! Texto fantástico. Gostei do teu blog e vou passando por cá.

Jose disse...

Meu amigo só passei aqui para deixar um abraço.

Mas deu para ver que continuas em grande luta com com o teu lápis.


Um baraço


José

bsh disse...

Lindissimo...

Parabéns

as velas ardem ate ao fim disse...

Parte de ti que te constroi.

um texto belissimo que me emocionou.

um bjo

paula disse...

Tenho poucas palavras para dizer da beleza do que li .
Poucas palavras para explicar o quanto este sentimento é humano , o quanto entendo que quem fez parte de nós, fará sempre . Podemos arrumar tudo , mas não esquecer .
Muito lindo , como sempre aliás ...
Paula

Anónimo disse...

Alguém disse um dia que "é sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz"!

As tuas palavras mostram um bocadinho de cada um de nós, um bocadinho daquilo que todos nós sentimos um dia... e tu passas isso para "o papel" de uma forma tão subtil, mas tão sentida ao mesmo tempo.

Faz-me bem ler-te! Obrigada! Continua!

CLÁUDIA disse...

A harmonia que consegues encontrar nas palavras que escolhes para nos mostrar um bocadinho de alma é única.

Livrar-nos dos "outros", dos que fizeram também parte do nosso percurso, é sempre deixar um grande pedaço de nós para trás... não é?

Beijinhos. ***

Cristina Costa disse...

http://www.youtube.com/watch?v=sHhVydgvuAc

Cumprimentos

Jo disse...

É. Há memórias que se nos entranham na pele. Despi-las é ficar nú.

:)

Beijo*

Ima disse...

Como te entendo!!!
Muito belo este texto, belo demais...
Obrigada por estares sempre aí. Pelas tuas palavras e pelo teu carinho...
Beijo

Patrícia Mota disse...

Aceita o texto que publiquei no meu blog como um comentario a este.

Patrícia Mota *

Miriam disse...

Dizer mais o que????
Perfeito

Bjuss de carinho

YTMO disse...

Quando amamos as nossas memórias só fazem sentido quando entrelaçadas... ou ficam completamente desconexas... como a vida!

...deliciosamente bem escrito!!!

bjs***
YTMO

Anónimo disse...

Brain....

Que bom seria se pudessemos simplesmente encaixotar todas as lembranças e recordações que nos marcam e magoam... selar a caixa e enviá-la para bem longe...
Infelizmente não é assim tão facil ... e boas ou más são vivências nossas e farão sempre parte da nossa vida...

Mais não consigo dizer porque a emoção é grande...

Em lágrimas deixo um beijo...
Vitória

ruth ministro disse...

Este texto está absolutamente magnífico... Adorei.

Beijos