sábado, agosto 27, 2016

O QUE FICA

Nunca é a mesma luz que me ilumina. Muda a cada dia que passa. A cada hora. Cada minuto. Como eu. Que já morri tantas vezes. E nunca é o mesmo eu que fica. Sempre outro. Como as sombras. Que se acumulam. Que não mudam. Amontoam-se. Espalham-se.

Já morri tantas vezes.
Lembro-me bem da primeira vez. Uma espingarda de pressão. Um pequeno pássaro na minha mira. O disparo. A queda. Do pássaro. E de mim. Ambos tombados no chão. Em agonia. E a interrogação na minha mente: Porquê? Mergulho em mim na procura de razões. A ausência do encontro. Devastação de ser. E nunca mais o mesmo.

Já morri tantas vezes.
Depois as pessoas. Várias. Muitas. Uma a uma. Em choque. Em dor. Cada uma delas levando um pedaço de mim. E as sombras a ganhar volume. A espalharem-se. E eu sempre na penumbra. Com alguma procura da luz. No meio do medo. Esse. Que me fala. No silêncio. Com silêncio. E nele eu sei. Eu sei que a loucura tem espinhos. Que constantemente me ferem. Que constantemente me tentam. E resisto.

E eu, que já morri tantas vezes, eu sei.
Sei que a vida inteira é um acto de deixar partir. Mas eu não gosto de partidas. Nunca estou preparado. Muito menos dessas. Sem momento de despedida. Dos outros. Ou de mim.

sábado, agosto 06, 2016

SEM MIM

Aqui estou eu outra vez. Frente a esta porta. Sempre a mesma porta. A chave na mão. Olhos no chão. Pés parados. Tudo tão pesado. A vida em atraso. Querer abraçar-te e não ter coragem. Aqui, todo eu sou nojo. E como que ardo por dentro. Chega-me o cheiro a café. Com ele a imagem da (nossa) cafeteira. E eu um fraco. A vida como justificação. Em mentira. Eu todo culpa. A tua imagem em mente. E por isso parado. Sem coragem para entrar. A imaginar-te em palavras:

- Correu bem no trabalho?
E eu com os olhos em fuga a responder-te que sim. Que o trabalho é muito. Por isso o chegar mais tarde. A mentira a pesar. E o medo que a vejas nos meus olhos. Mais ninguém me conhece assim. Tu em aproximação. E o receio maior:

- Que cheiro é este?
E eu não saberia o que te responder. Em denúncia. Por isso cheiro uma vez mais a minha roupa. Em procura. E só o meu cheiro. Em descanso. Junto com o cheiro a medo. Que só eu sinto. Pelo menos acho que é assim. Que só eu. O medo de tudo. E o desejar não o ter feito. Arrependimento. E o saber que amanhã será igual. É sempre igual. E o cheiro do café. E tu lá dentro. E eu fora. Em culpa.

Tivesse eu coragem. Seria outro.
Não sem ti. Nunca sem ti. Sem ela. Ou então… sem mim.