Sabes
Pai, por vezes doem-me os dias.
É tremendo o peso que carrego sobre os ossos dos pés. E os dias doem. São pálpebras
de pedra que batem contra todos os espelhos. Racham. Esmagam. Pela dor, chego a
desejar o esquecimento. Deixar de ser eu frente a este mar imenso de nomes a que
outros chamam vida. Não ser nem memória.
Ser apenas silêncio. Ou olhar. Por cima do ardor.
Doem-me tanto os dias às vezes Pai.
São toda uma devastação. São as feridas de todos que me rasgam a pele. Tudo
sangra. Como espinhos numa garganta que canta. Canta a sua dor numa tentativa
parva de purga. Porque a dor não se purga. A dor não se expele ou sequer se
aniquila. A dor vive em nós. Em pequenas trevas. A dor somos nós. Em pequenas lâminas.
Doem-me tanto os dias Pai.
Na lembrança das coisas, vejo todas as despedidas. Todas as casas agora
sombriamente vazias. Todos os abraços dissolvidos. Leitos desfeitos. Palavras
caladas. Há frases inteiras para sempre gravadas no vento. E sinto. Tudo acaba.
Tudo morre com o seu nome. Como flores que bebem as jarras. Como raízes que
apodrecem a terra. Em silêncio.
Doem-me os dias Pai.
Numa dor que sou todo eu, ouço, vezes sem conta, o mesmo eco:
Porque continuo aqui?
Taradisses
Num "mundo de loucos", em que as relações interpessoais muitas vezes nos "passam ao lado", vamos, com base nas nossas vivências e alguma imaginação à mistura, fazer deste cantinho um centro de reflexão e de diversão.
sábado, setembro 16, 2023
DOEM OS DIAS
sábado, setembro 09, 2023
DUETO A SOLO
Caminho
descalço sobre as palavras para não as ferir. Por entre o tempo que se derrama
sobre as suas letras, por vezes, mora o medo. E como não sei onde fica o seu
epicentro (fraturas expostas), de algumas guardo distância. Desconfortos de
existência. Como se num carrossel as suas letras formem uma magnetização
própria. Que me atrai em contínuo. Delas fujo. Não as uso. Em cobardia. Por não
saber o que depois delas fica. Por não saber como ficas.
Há quem seja comum. Pouco acrescento. Mas não tu. Gosto de te ver chegar ao
texto. Demorares-te nele. Ver os teus olhos navegarem pelas suas ondas. Os
arqueios dos teus lábios a acompanhar a sua navegação. Os brilhos surgirem nos salpicos
deixados pelos ventos amenos que te vão trespassando o peito. E depois da
leitura, como quem beija na boca, olhares-me nos olhos. E com o seu silêncio dizeres-me
que sou teu. Como quem fala Amor. E o diz numa canção.
Seremos sempre nós por entre as sílabas. Serás sempre embalo.
Condimento das frases. Música. Calor e lágrima. Corpo de texto.
Vagas de sentires.
Dueto a solo.
sábado, setembro 02, 2023
IMENSIDÕES
Nunca
quis a profundidade do espaço. Nem toda a imensidão de desconhecido que ele
encerra. Com toda a sua beleza e possibilidades, ele é-me apenas excesso. E eu
quero-o em mínimo. Em nada. Se ele representa a distância de ti, quero-o ínfimo.
Inexistente. Porque todo o espaço é silêncio. E eu transbordo todos os teus.
Quero as tuas palavras a serem casa para os meus olhos. O teu olhar as minhas estrelas.
E que sejam as tuas curvas a definirem as minhas fronteiras.
Dir-te-ia que te amava ainda antes de te conhecer. Amava a ideia de ti. Aquela
a que vieste dar corpo. Mostrando-me o quanto te pensava em pouco. Aterradoramente
incompleto. Por não te conhecer. Por te pensar para além de mim. Quando a tua
existência é tão profundamente a minha. E sem a tua, ela é tão escassa. É
possível eu existir sem ti? Os nossos caminhos nem sempre foram comuns. E ainda
assim, os nossos passos foram-se sincronizando para chegarem a hoje.
Esquece o céu. A Lua. As estrelas.
Vamos ver o mar.
No mar tudo se une. Todas as existências se partilham. E nas ondas temo-nos. Em
marés. Como vagas em movimento. Ora suaves. Ora em força. Mas sempre em movimento.
Como que levando-nos. Como que sendo-nos. Deixa-te elevar pelas ondas. Deixa
que o teu corpo flutue. Que seja maré. E que os meus braços te sejam rocha. Te firmem.
Como fio vermelho que liga o fim a todos os inícios. Como ponte que une margem
nenhuma. Como desculpa para a vida.
Acordamos juntos?
sábado, agosto 26, 2023
O MESMO AR
Com os
dedos tocando-se sobre a mesa, olho-te nos olhos e é-me impossível não sorrir naquele
instante que é todo o meu mundo. Olhar-te é um diálogo intenso. Absorvente. Onde
qualquer palavra é excesso. São ainda tantos os nadas que nunca te disse. Digo-os
direto para os teus lábios que articulam também nenhuma palavra. Como em eco. Como
quem leva no bolso as chaves da mesma porta. Para as usar no final de todos os
dias. Para o repouso dos corpos sob o mesmo lençol. Respirando o mesmo ar.
Sobre a mesa trocamos dedos. Pelas suas pontas tocamo-nos por inteiro. Em
harmonias de silêncio. Plenas. Formas incompreensíveis de Amor para os demais. Quem
nos olhasse não veria mais que dois silêncios. E no entanto, os toques em toda
a sua suavidade, não são menos que desejos intensos. Violentos até, na sua tão
grande força de amar. No desvario de todos os sentidos ouço os teus lábios
mudos chamar por mim. O teu cabelo ondular brisas de corpos. A tua pele fulminar
loucuras nossas. Orquestra de sentidos. Em apogeu. Como se não ali. Como se não
mais nada.
As mesas contigo são mundos. Quero as mesas todas.
Quero as tuas mãos sobre elas todas.
E os teus dedos. E os teus olhos.
Respirando o mesmo ar.
Sempre.
sábado, agosto 19, 2023
EM PERTO
Parar. Recompor os caminhos. Evidenciar importâncias e descartar pormenores. Daqueles. Que não nos fazem. Que não são os que nos definem. Mas que tantas vezes assumem a primazia sobre nós. E passamos mais nós a ser eles do que eles a não sermos nós. Respirar. Relembrar propósitos. Reordenar vivências. Música em fundo. E tu em perto. Tu sempre em perto.
Um pássaro pousa na varanda. Olha-me fixo. Diria que calmo. Agitando todos os outros que vivem em mim. Retirando-te detrás da cena (de onde nunca sais). Trazendo-te às palavras. Nesta distância próxima em que estamos, fazemo-nos dois. Mas no entanto, ainda assim, como se todos os pássaros se unissem, os nossos corpos crescem. Fazem-se caminho. Unificação. E são propósito. E são vivência. E tu em perto. Tu sempre em perto.
Olho o horizonte e tento perceber o que os teus olhos vêem neste momento. Fecho os meus para voar o futuro. Com o pássaro vou onde ainda não estamos. Onde tudo é (também) sobre ti. Uma brisa eleva-te. Segue-te até esse lugar onde sempre acontecemos. Onde a música nos diz segredo e onde nos sabemos. Atravessamos impulsos. Bebemos olhares. E somos respiração. E canto. E sangue. Masculinidade de pensamento. Em estremecimento.
Agarra-me agora as mãos e diz-te outra vez minha.
Leva-me onde quiseres. A todos os lados ou a lugar nenhum.
Mas faz (uma vez mais) tudo recomeçar.
Contigo em perto.
Dentro de mim.
sábado, agosto 12, 2023
EM VOZ BAIXA
Nestes
tempos de ausência, aprendi a partilhar com a minha sombra o vazio que deixa o
toque inexistente da tua mão na minha. O silêncio da tua voz do outro lado de
nenhum telefone. O nascer de nenhuma lua que te consiga trazer, sobre o meu
nome. E confesso. Confesso que sentir-me rodeado do teu nada, me assusta. Assusta-me
não te saber. Assusta-me sentir-me permanentemente deste lado aberto de uma
porta fechada. Em incógnita. Em tentativas vãs de adivinhação.
Olho os restos das tuas mãos que repousam sobre as minhas e pergunto-me que cor
pode ter hoje o teu nome. Esse. Que repito a cada dia. Em voz baixa. Como uma
prece. Para que não morra em mim nenhuma das palavras que te nomeiam. Porque há
palavras que por não as articular morrem na minha boca. Amo-te. Quero-te. São nestes
dias verbos incomuns. Sem qualquer cor. E eu não consigo fingir que esta permanente
espera por ti, me suspende. Deixa como que esquecido numa qualquer dobra de
tempo por desfazer.
Porque tu sabes. Tu sabes que há tempos que não passam. Que ficam sempre. Mesmo
que não os queiramos contar. Por isso nestes dias conto pedras. Conto mares.
Nuvens. Porque esses não são tempo. Nem acumulam. Apenas têm a existência do
segundo em que o faço. Enquanto o reflexo da minha imagem numa qualquer água não
vem acompanhado da tua. E nele consigo ver. Ver que tu és mais eu do que eu alguma
vez fui.
Então corro.
Corro a fechar este meu lado aberto da tua porta fechada.
Não vás tu nela, encontrar o caminho de saída.
sábado, agosto 05, 2023
LINGUAGEM PARA AMAR
Parecem-te
fortes estes braços que te sustêm. Que num abraço são capazes de te erguer.
Elevar-te acima de ti. Ser-te proteção. Segurança. Mas é porque não sabes. Não
sabes quando a palavra Amor. Ou a palavra Beijo. São meras fibras de sementes.
Apenas com a força de promessas do porvir. Que se questionam com a expectativa
do futuro. Em incógnita. Dúvida.
Parecem-te firmes estas mãos que te agarram. Que seguram as tuas com a firmeza
de porto. Te são garantia. Certeza. Eternidade. Mas é porque não sabes. Não
sabes quando a palavra Pele. Ou a palavra Boca. São apenas fragilidade de dedos.
Incerteza de palmas. Na constante dúvida do saber. Do ir acontecer.
Parece-te firme este tronco que te envolve. Te transmite calor. Aconchego.
Batidas. Mas é porque não sabes. Não sabes quando a palavra Amo-te. Ou a
palavra Quero-te. É apenas tremor. Inconstância. Debilidade. Doce devastação
interior.
O amor no seu tempo futuro, é terrivelmente profundo. Desconstrução. Linguagem
para amar. Sem base de saber. Sem perdão na roda da vida. Porque apenas
expectativa. Porque apenas quereres. Que não seguem outra lógica que não a dos
desejos. Pensar com delicadeza. Agir com ferocidade. Em nome de todas as
loucuras contidas. Por sem ti. Aqui. Agora.
O meu corpo é construído pelas palavras. São elas que o fazem. Construído com
base em sílabas únicas. Ainda que comuns. Todas elas te dizem. Todas elas te chamam.
Sem tempo. Sem lugares. Porque em mim tu existes. Em frases (in)completas. Em palavras.
Sílabas. Até à mais ínfima letra.
Em contínua espera.
Pelas tuas.