sábado, janeiro 28, 2023

DOIS DIAS DEPOIS

Dois dias depois, o teu prato continua na mesa.

Em tempo futuro, o mundo continuou a acontecer. Na normalidade dos dias. Essa que não vemos. Nunca vemos. Que na certeza da sua sucessão, chegamos a, por vezes, até os ignorar. Menosprezar. De alguns desejar supressão. Paragem. E que agora são dor. Saudade. Vazio. Falta.

Quero manter-te em mim em calor. E na avidez dos sentidos procuro por ti. Tua voz. Olhar. Sorriso. Aconchego de abraço. Coisas de ti. Simples. Em dádiva. Como sempre Tu. Sempre aqui. Não mais aqui. E incessantemente chamo por ti. Procuro-te assim. Percorrendo os mesmos passos mas caminhando de costas. Pois sei que só no tempo passado te encontro. Quando o possível era a norma. Quando éramos felizes e não o sabíamos. Sonhávamos a cores. E estavas aqui. E o prato tinha utilidade.

Agora, todas as coisas têm o teu nome. Invocam-te. Vejo pedaços de ti em tudo.
Dir-te-ia se pudesse que sou mais teu pai que nunca. Que te sinto como nunca. Ou como sempre. Sem então o saber. Que a tua mãe fez a tua comida favorita e não conseguimos comer. Ficou na mesa. Em silêncio. Ao lado do teu prato. Esperando que te servisses primeiro. Como sempre.
Dir-te-ia se pudesse. Mas palavras são agora mudas. Gritam dentro. Apenas eu as ouço. Em estridência.

Dois dias depois foi há dois meses. Dois anos. Não sei. O tempo tem agora outra medida. Todo ele me parece excesso. Conto-o ao contrário. Não em soma. Em réstia. Em medida para o reencontro.

E o teu prato continua na mesa. Em ausência.

Como Tu. Que não estás.
Como nós. Que apenas existimos.


sábado, janeiro 21, 2023

CONTORNAR O MURO

Revirar gavetas. Revolver os passados. Gavetas fundas. Interiores. Em armários escuros.
(agora) Vazios. Repletos de silêncios. Abrir as portas e retirar as camisas.
As que ficaram. Por não interessarem. Por lhes faltarem um ou dois botões.
Como eu. Com pedaços em ausência. Arrancados. Em parte incerta.
 
Mergulhar nas artérias e navegar os sentidos.
É por elas que circulam os pensamentos. E nos roem. Numa devastação inteligente.
Remanescem nos silêncios. Nos finais. Que repartem a coabitação entre nós e as gavetas.
As que estão dentro dos armários. E as outras. Em partes alheias.
 
Por fim, procurar pelas palavras.
Perceber quais. Para depositá-las na tua boca. Para que cresçam. Floresçam.
Convertam os silêncios em sons. Teus. Que me trazem o teu nome. Em desejo.
Querer profundo que te nomeia. No estertor dos dias. De todos os dias.
Até ao último instante da consciência. À boca da noite.
 
Apenas o teu ventre seca as minhas lágrimas.
E me faz de novo. Em estremecimento.


sábado, janeiro 14, 2023

DESEJOS

Leva-me contigo
 
Na fina linha do teu sorriso.
Nas dobras do teu abraço.
No mais profundo de íntimo que tenhas de ti.
É aí que quero habitar. Nesse lugar.
Onde aconteces a espaços. Pouco a pouco.
Em résteas de ser e de vontades.
Que quero só minhas.
 
Guarda-me em ti.
 
Dentro do toque dos teus dedos.
Tatuado no avesso dos teus lábios.
Aí onde estão as mais profundas marcas do beijo.
Como sombras de realidade.
Onde moram (todas) as minhas vontades.
 
Faz-me casa.
 
Vem com tudo morar em mim.
Volta sempre para este (teu) canto.
Ele tem o teu nome. É apenas teu.
Nele tu existes desde sempre.
 
E Vem.
 
Diz-me que estás a chegar.
Que vens para ficar.
Que deixas que a luz te abrace.
E que eu te seja paz. Calor. E mar.
 
Leva-me. Guarda-me.
Mas vem.
 
Porque sem ti,
Sou apenas um espaço vazio.
Onde a vida não acontece.



sábado, janeiro 07, 2023

TROUXE DE NOVO O CORPO

Trouxe de novo o corpo a este lugar dos impossíveis realizados.
Longo o tempo. Ausência distante. Em pausa de pele. De mãos. De beijos. Mas nunca de vontades.
Essas, onde te aninho em mim. Num canto onde só tu existes. Sem tempo ou espaço. Apenas vontades. Em abundância.
 
Na lembrança total das coisas, tu vives em mim. Desvairadamente.
Neste amor terrivelmente profundo, onde te abrigo, retenho-te.
Nesta linguagem para amar, onde te escrevo, (re)vivo-te.
Nesta devastação de sentidos, onde te sinto, tu existes.
 
Tenho agora esta nova memória do que somos.
Da tua boca. Em palavras e calor húmido.
Das tuas mãos. Em cumplicidades mudas. Indizíveis.
Do teu odor. Na mais profunda intimidade. Em dádiva.
 
Trouxe de novo o corpo a este lugar dos impossíveis realizados.
Neste lugar que é só teu. E onde nada sobra.
 
E somos.