terça-feira, março 06, 2007

Dentro de ti

Dentro de ti, ainda que nunca suspeitasses.
Também a terra acaba e o mar começa.
Estavas em poiso firme. Agora esbracejas, líquida.
Em ti, a terra também acaba e o mar começa.
É onde o diabo faz o ninho.

Rodrigo Guedes de Carvalho
in “Mulher em Branco”

segunda-feira, março 05, 2007

Curtas (8) - Busca

Em tempos que a memória não deixa precisar, viveu um homem, que por não ter a seu lado ninguém com quem a vida partilhar, se aventurou numa viagem sem data de regresso.

E assim, partindo pelo mundo, procurou em cada rua de cada cidade, esse alguém com quem pudesse partilhar a sua existência.

Á medida que ia progredindo no terreno, o cansaço ia-se apoderando cada vez mais dele. Mas o desejo de encontrar alguém era tão grande, que se sentia impelido a continuar sempre a caminhar cada vez mais e mais, mesmo sabendo que o caminho de volta era cada vez maior.

Pelo caminho, encontrou várias pessoas que, ao saberem do propósito da sua caminhada, se propuseram a ocupar aquele espaço que ele tinha disponível. Mas ao fim de algum tempo com elas, concluía que aquela ainda não seria a pessoa correcta com quem o fazer.

O tempo foi passando, o caminho aumentando e cada vez que parava a olhar para alguém, sentia que ainda não tinha estabelecido “aquele encontro”.

E o caminho foi de tal forma grande, que quando deu por si, estava novamente no ponto de partida. Ainda não refeito da surpresa que isso lhe causara, avistou ao longe a forma de um corpo que se aproximava de si, em passos rápidos e de forma decidida.

Era a Ana, sua amiga de longa data, que conhecera desde sempre. Mas que agora… estava diferente! Estava radiosa, estava incrivelmente agradável, até mesmo… “apetecível” para ele. Estivera assim tanto tempo fora? Teria ela mudado assim tanto durante a sua ausência?

Após um abraço sentido carregado de saudades e sentimentos bons, ela deu-lhe um beijo na cara, tal como sempre fazia quando se encontravam. Mas agora… esse beijo soube-lhe de forma diferente. Esse beijo, soube-lhe incrivelmente bem e naquele momento, ele soube, que havia corrido o mundo, para descobrir a pessoa incrível… que sempre estivera ao seu lado, mas que ele, nunca soubera ver.

A busca havia terminado. O espaço estava, definitiva e plenamente ocupado.

quinta-feira, março 01, 2007

Paradoxo do nosso tempo

O paradoxo do nosso tempo na História é:
Termos prédios mais altos, mas paciência mais curta;
Estradas mais largas, mas pontos de vista mais estreitos;
Gastarmos mais, mas possuirmos menos;
Comprarmos mais, mas aproveitarmos menos;
Termos casas maiores e famílias menores;
Termos mais diplomas, mas menos razão;
Mais conhecimento, mas menos juízo;
Mais especialistas e ainda mais problemas;
Mais Medicina, mas menos bem-estar.

Nós bebemos demais,
Fumamos demais,
Gastamos demais,
Conduzimos rápido demais,
Ficamos acordados até mais tarde,
Acordamos muito cansados,
Lemos muito pouco,
Vemos TV demais.

Multiplicamos nossos bens, mas reduzimos nossos valores.
Falamos demais, amamos raramente, odiamos frequentemente.
Aprendemos a sobreviver, mas não a viver.
Adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos.
Conquistamos os espaços, mas poluímos a alma;
Escrevemos mais, mas aprendemos menos;
Planeamos mais, mas realizamos menos.
Aprendemos a nos apressar, não a esperar.
Nós construímos mais computadores para armazenar mais informação, produzir mais cópias do que nunca, mas comunicamo-nos menos.

Estamos na era do homem grande de carácter pequeno.
Esta é a era de dois empregos e vários divórcios;
Casas chiques e lares despedaçados;
Esta é a era das viagens rápidas, fraldas e moral descartáveis.
Um momento de muita coisa na montra e muito pouco na dispensa.

O segredo da vida não é ter tudo o que se quer,
Mas querer tudo o que se tem!


(autor anónimo)

PS: O Texto não é meu, tem "apenas uns retoques" pessoais.

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Curtas (7) - Anjo da Guarda

Era já tarde.
Muito tarde e ela, não parava de andar de um lado para o outro, inventando coisas inadiáveis, só para adiar, uma vez mais, o momento diário em que o inevitável aconteceria. Por fim, numa completa rendição ao avançado das horas, acabou por subir e após a passagem pelo WC, lá acabou por se deitar. Num esforço final de adiamento, ainda ligou a televisão, passou em revista todos os canais, desligando-a de seguida e passando ao livro, mas a este… a este não resistiu e acabou por adormecer com ele semiaberto caído sobre a travesseira.

Então, nos seus olhos cerrados, começaram uma vez mais a correr aquelas imagens. Imagens que os sonhos lhe traziam sempre, invariavelmente, todos os dias, que lhe perturbavam o sono e não a deixavam repousar.

E como era este o momento pelo qual esperava, entrei. Entrei no seu sonho, resgatei-a para o interior das minhas muralhas e… abraçando-a com um só braço, deixei que repousasse a sua cabeça no meu ombro, a salvo de todas as tempestades que lá fora decorriam.


- Que bom que vieste!
- Então? Continuas com estes sonhos…
- Sim, não consigo que eles me abandonem… podias vir todos os dias…
- Não, não posso. Tens de te libertar deles sem mim.
- Era bom que viesses. Era bom que estivesses sempre ao meu lado.
- Mas eu estou sempre ao teu lado!
- Eu não te vejo…
- Mas eu estou sempre lá! Não te sentiste já muitas vezes observada?
- Sim.
- Não sentiste já tantas vezes em dias frios, um calorzinho que te provoca um arrepio de calor?
- Sim.
- Não te sentiste já contente sem saberes porquê?
- Já… mas poucas vezes…
- Não sentiste já que há dias em tudo te corre bem?
- Sim… mas mais poucas vezes ainda…
- Essas poucas vezes, são aquelas em que ergues barreiras que não me deixam passar.
- Então… Tu existes mesmo? Tu és real?
- Eu sou tão real quanto os teus medos, os teus desejos e as tuas fantasias.
- Então, porque não te vejo sempre?
- Porque eu não posso estar sempre aqui para ti. Tens de aprender a viver bem, apenas por ti.
- Isso é um castigo?
- Não… é uma ajuda!
- Mas, ajudavas-me mais se estivesses sempre comigo!
- Não, não ajudava não… deixavas de saber viver por ti e ficarias dependente de mim.
- Então… como faço para te encontrar?
- Pensa-me, deseja-me, mostra-me que me queres pelo prazer e não pela necessidade.
- E tu vens?
- Não estás a entender. Eu não preciso de vir, eu estou sempre cá!
- Então… porque não te vejo? Sempre? De dia até?
- Porque eu existo num outro plano, numa outra realidade.
- E que realidade é essa? Que plano?
- No interior de ti. Nos teus sentimentos, na tua mente.
- Então como faço para te ver?
- Olha-te no espelho e vê o melhor de ti. De seguida, fecha os olhos e ver-me-ás.
- Assim? Só isso?
- Experimenta e verás que não é “só isso”. Mas sim, basta isso.
- Ver o melhor de mim… e se não houver?
- Há sim! E é muito… e é grande… assim o queiras ver.
...
- Posso te perguntar… como te chamas?
- O meu nome, é aquele que te acalmar, te trouxer memórias boas, te der uma sensação de bem estar, que te proporcione uma sensação de felicidade.
- E qual é?
- Apenas tu o sabes…
- E… o que és?
- O que sou? Simples: sou o que de bom há em ti! Sou aquilo que reprimes em ti, numa parte do teu ser, que manténs trancada e da qual, apenas tu tens a chave.
- Então… como faço para te ter sempre comigo? Assim?
- Limpa da tua mente as más recordações. Limpa de ti os sentimentos negativos. Deixa viver o que de melhor tu tiveres!
- Tu? És Tu o que de melhor eu tenho…
- Não, estás enganada!
- Então o que é?
- És TU!

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Destroços (2)


Nos destroços do que fomos,
Passeio muitas vezes o meu pensamento,
E neles,
Deito o meu corpo,
Que inexplicavelmente,
Ainda chama por ti.

Nos destroços do que fomos,
O meu sentimento teima em ficar,
Neles parece ter estabelecido morada,
Ainda que sempre que nos lembro,
Uma mágoa se faça sentir,
E quase, quase sempre,
Uma lágrima surja,
Para me turvar o olhar.

Pelos destroços do que fomos,
Não gosto de me passear.

Para os destroços do que fomos,
Não gosto que o meu pensamento,
Recorrentemente corra para lá.
Mas nada consigo fazer,
Para combater este meu estar,
Principalmente,
Quando à noite,
Na travesseira a cabeça deito,
Na tentativa de,
Quem sabe,
De nós,
Enfim,
Conseguir repousar.

Mas quanto mais tento,
Mas quanto mais me esforço,
Mas quanto mais uma parte de mim
Grita o querer com esta situação terminar,
Mais eu,
O meu sentir,
O meu pensar,
E até paradoxalmente,
O meu gostar,
Teimam em por lá se passear.

Ás vezes,
Penso que por lá te vou encontrar.

Ás vezes,
Penso que também tu,
Por lá deverás andar.

Ás vezes…
Gostava tanto que assim fosse…

Nos destroços do que fomos,
Ainda te sinto.

Sinto o teu cheiro,
Impregnado nos estilhaços,

Sinto a tua forma,
Cravada nas formas das ruínas,

Sinto a tua voz,
Nos sons que vento profere,

Sinto-te até dentro de mim,
Quando aqui me deito,
No fundo,
Para te encontrar.

O que fomos,
Sei que não voltaremos mais a ser.

Mas no meu íntimo,
Embora a razão teime
Em mo fazer negar,
Eu sei…
Eu quero…
Eu desejo…

Espero por ti!

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Duas...

A minha Força

Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra.
Porque a minha força determina a passagem do tempo.
Eu quero.
Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo.
Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio.
Eu quero.
Eu sou capaz de expulsar o sol da minha pele, de vencê-lo mais uma vez e sempre.
Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer.
Porque a minha força é imortal.



A Verdade

A verdade, como o silêncio, existe apenas onde não estou.
O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa altura, abrem rasgões de sangue dentro de mim.
Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso.
Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos.
Intocado e intocável.
Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta.
É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade.


José Luís Peixoto
In “Cemitério de pianos”

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Destroços

Inspiração apartir de uma imagem...

Sobre os destroços do que fomos,
Há um pó que ainda paira no ar,
Pequenas partículas de sentimentos,
Que teimam em não repousar,
Sobre os destroços do que fomos.

Esses destroços que por vezes visito,
Onde por vezes vou para nos tentar ver,
Despido de quaisquer pensamentos
Anteriormente feitos,
Permanecem suspensos no tempo,
Como que à espera,
Que deitemos mãos à obra
Para os erguer de novo.

E eles não sabem,
O tamanho da minha vontade,
Em fazê-lo.

E eles não sabem,
Que eu permaneço à tua espera.

E eles não sabem,
Que é o aproximar da tua silhueta,
Que busco,
Quando desta varanda,
Pendo a minha cabeça sobre os braços,
E fixo o chão,
Onde outrora deixavas a marca dos teus pés,
No regresso a casa.

Os destroços permanecem,
Empoeirados.
E a minha vontade,
É que eles assim possam permanecer.
Porque neles ainda vejo a tua forma,
Neles ainda consigo sentir o teu odor,
Porque ali,
Naquele lugar,
Tu ainda existes,
Comigo.

São apenas destroços,
Meros cacos do que fomos,
Mas neste momento,
Para mim,
São tudo!

Se calhar,
Um dia,
Surges tu e incentivas-me a reconstruí-los.

Se calhar,
Um dia,
Arranjo alguém com quem os reconstruir.

Se calhar,
Um dia,
Eles simplesmente, desaparecem!

Mas nada disso agora importa,
Nada disso é relevante,
Porque as memórias do nosso amor,
São tantas e tão grandes,
Que não cabem naquele espaço,
Nem têm tempo!

Espero por ti!