sábado, maio 28, 2016

NÃO HÁ HERÓIS

Digo-te do meu passado porque do futuro não sei.

Sou do tempo em que não havia heróis. E eu também não o sou. O escuro continua a ser ele mesmo. Com tudo. Todas as sombras. Todos os mistérios. Todos os medos. Vejo-me deitado. Na minha cama. Com a porta aberta, a cabeça coberta e a luz acesa. Para os afastar. A eles. Aos (meus) medos. Mas sabes, eu sabia que eles não iam embora. Eu sabia que continuavam lá. Todos. Escondidos na luz. À minha espera. Porque eu nunca fui um herói. Fui sempre só um somatório de medos. Todos os medos. Na luz. Cheio de sombras escondidas.

Depois tu. O ter de crescer para ti. O ter de ser forte para ti. E contigo fui-os esquecendo. Arrumados. Em gavetas. Mas sabes, hoje tenho ainda os medos. E para além deles, um medo maior. O medo de chegar e já não seres tu. O medo que me esqueças. Porque é tanto o que já esqueceste. O pano em cima da mesa. Os medicamentos na caixa. O almoço. As horas. Até de ti. Só resto eu. E tenho medo.
E agora não adianta cobrir a cabeça, abrir a porta, nem acender a luz. Não resulta. Não funciona com este medo. Embora acenda a luz por diversas vezes - para ver se estás. Embora deixe a porta aberta - para poderes circular. Embora cubra por vezes a cabeça - para ficar mais junto a ti.

Um dia (breve) sei que serei eu. Sei que irei chegar e já não irás estar. Não vais ser mais tu. Não irei ser mais eu para ti. E eu, que não sou um herói. Que sou apenas um somatório de medos, a saltar das gavetas. Eu não sei. Como vou conseguir viver, sem mim, em ti.

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